“A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu.”
-Alice no País das Maravilhas, Lewis Carroll.
Alice. Ei, Alice, quem é você agora? Uma borboleta feia, talvez? Amor em decomposição? Alice está entediada. O pior aconteceu, ela não pôde evitar. Passa a noite só, no quartinho, a agulha amiga cravada no braço frágil. Alice sabe voar. Encolhe-se de prazer, acaricia o próprio rosto. Como é bonito, tudo, tudo isto, e ela também. É uma princesa novamente. Guitarras ceifam pesadas o ar, metal. Dá vontade de se agitar. Quem sabe incendiar algo, hum. Não existe orgasmo maior que a liberdade, hum.
De orgasmos ela entende. Teve muitos amantes. Adora os homens, todos, bonitos, feios, delicados, brutos, extrovertidos, tímidos. Cada um possuí um gosto especial, bombons sortidos numa caixa. Deleita-se com uma mão leve, seu toque gentil faz com que imagine a si própria menina preciosa. Excita-se com a mão pesada, é uma tortura que merece, paga por crime desconhecido, mas que certamente cometeu. E ela é tão ruim, imoral – pensa, que cometeria de novo e mais uma vez, só para ser a vítima. O martírio é afrodisíaco, põe o corpo em rebelião, causa suspiros profundos, deixa a alma cega de prazer.
É verdade que não gosta só de homens. Não, isso seria um limite, seria uma falta de imaginação. Alice, é bom que saiba leitor, tinha toda imaginação do mundo. Divertia-se com as meninas também. Seios contra seios, hum, que coisa.
Mas que terra era aquela? Onde estava? A menina não sabia. Cada objeto disputava para ser o mais estranho. Até mesmo uma pantufa. Não, principalmente pantufas. Também chapéus, que dão má sorte, se você usa um chapéu, pode perder a cabeça. Deus me livre! Mas, onde, onde estava afinal? Que mundo era aquele quarto? O lugar continua o mesmo, as respostas vão mudando. Recortes na parede, desenhos, palavras. Alice é uma artista sim, acredite se quiser, mas demos um exemplo, pois não devemos acreditar em tudo que os contos dizem. A menina certa vez pintou uma cena de parto. A mulher contraindo o útero com vigor, uma expressão aterrorizada no rosto. Eram as dores lancinantes do parto? Não. Ela está expelindo aliens gosmentos pela vagina e acima do desenho está a legenda: “Sra. Roswell e a alegria de ser mãe”.
Hoje Alice estava sem ideias para desenhar. O mundo ainda girava dentro dela. Hora de viajar. No deserto.
A poeira sobe do chão, machuca a vista.
- Não há ninguém aqui, acho, talvez – pensa.
Ela anda, sente um gosto estranho, porém familiar, na boca. Gim. Gosto de sonhos desfeitos. Merda, tá acabando o Gim. Ela bebe mais um gole, ri.
- Esse deserto tá muito chato hoje. Já sei, é melhor eu inventar um deserto melhor.
- Ei, Alice .
- Quem me chamou?
- Aqui, aqui jovem.
Um cacto sinistro chamava a garota. Dois buracos estavam no lugar de seus olhos, tinha uma língua de quase meio metro, balançando saída de uma bocarra vermelha e torta. Uma coroa de espinhos equilibrava-se na cabeça.
- Sou eu, Jesus, filho de Deus. Ninguém vem até aqui. Faz tanto tempo. Socorro.
Alice levou as mãos até a boca, seus olhos marejados de lágrimas.
- Jesus, não, meu Deus!
- Deus? Onde está? Onde, onde?
- Não, eu só disse meu Deus, ele não está aqui. Você sabe onde ele mora?
- Não. Mas ele costumava falar comigo. Eu suplico, estou sozinho há dois mil anos, ajude-me .
- Não posso, sou só uma menina perdida no deserto. Não sou capaz. Adeus.
O cacto chorou, as lágrimas tocaram o solo estéril e morreram. Cada lágrima já nasce morta no deserto. Alice sentiu. Corroeu com toda a dor do salvador, mas não conseguiu chorar, seus olhos eram nada mais que fontes secas. Ela partiu.
Um ruído. Algo corre por entre as paredes de rocha, circula, se difunde tal sangue no corpo. É veloz. Magma. Alice está no centro da crosta terrestre.
- Olá? Tem alguém aí? - Apenas o silêncio vermelho e rochoso. Pula num buraco no teto.
- Este lugar não tem nenhuma graça.
Volta para o quarto. Que dizem as estrelas no teto? A luz demora a chegar, demora tanto e por isso, por isso... Todas as estrelas dizem adeus.
- Adeus estrelas, gostava muito de vocês – responde Alice.
Começa a se recordar de coisas. Vê uma boina no chão. Um desfile militar perpassa seus olhos. As fardas assentadas, orgulhosas de si, as posturas sólidas, a marcha precisa. Seu pai é general. O som das botas pesadas, constantes, marchando impassíveis para o futuro. Cornetas festivas ressoam. Os olhos das esposas marcados de orgulho, que grandes maridos tinham! Homens de concreto. Uma libélula passou rindo dos homens, mas só Alice viu. Para onde marcharão as almas dos soldados mortos? A libélula deve saber.
Alice cria asas. Voa com a libélula, ambas pequeninas. Se todos conhecessem essa liberdade, haveria guerra? Não seria melhor cortar os ares, encher a alma de brisa, tornar a vida mais fácil? Ela tem pena. Daqui de cima vê-se tudo. As cidades e seus homens, quem é dono de quem nisso? Ela vai descendo para olhar melhor. Crianças brincam no verão. Bolas, risadas. Alice e a libélula adentram por uma janela. Um medo inexplicável toma o rosto de Alice. Que lugar é aquele? Tem uma menina na cama. Consegue sentir a tristeza de seus ossos frágeis, a fraqueza em seu coração de brinquedo. Levanta-se. Usa um avental branco. As paredes são brancas. Uma lavagem branca escorre seu cérebro. Quem é essa menina doente? Onde estão seus pais? Será algum dia feliz? Agora ela começa a se lembrar. Está louca, é isso. Olha-se no espelho, e pela primeira vez na vida está certa de algo. O pior aconteceu, ela não pôde evitar. Alice cresceu.
By Leonardo V. Toledo